domingo, 14 de julho de 2019

A depressão é amarga, mas porque não uma conversa doce, gostosa com café no jardim!

Vida, morte, risos, choros, aromas, sabores, sons, cores, cor, corpo negro presente. Corpos de atores negros em cena com sua potencia, sua beleza, sua força, sua voz, sua vontade de arte, de botar em prática seu lugar no teatro e também de trazer assuntos pouco discutidos, mas importantes de se falar, como o tema sobre a depressão. O teatro que é um lugar que há tempos é elitizado, feito de brancos para brancos, mas que com muita luta e persistência, aos poucos foi e vem abrindo espaços pra vozes e presenças consideradas marginalizadas. “Amargo Vietnã” é um espetáculo escrito por Daniel Magalhães um dramaturgo negro que também enquanto ator, ao lado da atriz Karla Ribeiro, também negra, trazem à tona os personagens que dão vida a peça.
“Amargo Vietnã” é um espetáculo de trabalho de conclusão de curso em artes cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), do aluno Daniel Magalhães. Ocorrido entre os dias 28 e 30 de setembro de 2018, no Galpão Cultural Sinhá Olímpia, na cidade de Ouro Preto - MG. Basicamente a história de “Amargo Vietnã” gira em torno de um alguém aceitou a morte e caminha em sua direção final, ainda que lentamente. Independente do Gênero, o que mais importa é o que é contado, hora por um homem doente, hora por um corpo feminino belo, forte e cheio de vida que habita este corpo masculino. Este que lidam com sentimentos, lembranças, que juram que as vive plenamente felizes, mas que parecem não existir. É um reflexo da vida cotidiana, ainda que da vida estranha, custosa, em busca de uma saída, um reflexo de alguns dos nossos vários “eus”. “Vietnã não é a guerra! É um conflito interno, grito aflora, que atinge os lugares, que abrange todos os instantes e relações líquidas. Tudo começa como teatro, mas na verdade é assim que se existe do lado de fora: um ensaio cotidiano sem reparos” (MAGALHÃES Daniel).
Esta peça não traz a militância de minorias negras em sua dramaturgia, mas que traz sim a presença e vivacidade visual desses corpos. Mas para além de tudo isso, trata de um assunto que é a “Depressão”, uma doença crônica, psiquiátrica que é recorrente, causando alterações de humor, do bem estar, gera variações cardíacas e na respiração, mas não chega a causar lugar de sinapse química. Caracteriza-se também como uma profunda tristeza e desesperança, mas que pode ser tratada com medicamentos, terapias e sociabilidade (o eu em relação com a sociedade), não podendo ser ignorada como algo banal.
O titulo do espetáculo tem muito haver com o que foi a história do pais Vietnã, marcado por uma forte resistência na guerra com os EUA, ao qual invadiu este pais, e tem por costume inferiorizar outros países. Porém o Vietnã foi forte e ainda humilhou os Estados Unidos. Uma guerra de sobrevivência, e, desse modo, faço assim uma relação a sobrevivências das vidas negras, contra o racismo, e ao mesmo tempo um paralelo a depressão, que é uma luta interna e social pela vida.
Daniel Magalhães passou um período com essa doença, que não é uma simples frescura ou tristeza brevemente passageira que afeta apenas as pessoas brancas, ricas. Ela atinge pessoas negras, de qualquer cor ou classe social, e não é algo que surgiu agora como “modinha contemporânea”, já existe há muito tempo, mas os investimentos em tratamentos e pesquisas são de fato mais recentes em nossa sociedade. Com isso Daniel buscou apresentar em sua peça, um pouco do que ocorre com as pessoas que tem depressão, sentimentos que vão da tristeza profunda, a loucura, confusões, delírios.
O medo, a solidão, a fragilidade, o sufocamento, compulsividade, ansiedade, a falsa felicidade, a dor, o desejo de morte, sentimentos, estão presentes na cena, mas também a simplicidade, a doçura, sonhos, a esperança, a vida. Parece confuso não é? Mas tudo isso faz parte de uma realidade do ator ao qual o mesmo quis mostrar, falar sobre, sendo assim algo confuso, causando um estranhamento no espectador. Também a não Linearidade do texto, das ações, da interação com os espectadores, do espaço alternativo, que não é considerado como palco italiano tradicional, é algo que tira os atores e o público da zona de conforto e padronizada do teatro ocidental. São esses, também um dos desafios e prazeres de se fazer teatro contemporâneo, performativo, que além de buscarem trabalhar com fragmentação de texto, ações e cenas, e que segundo FERNADES, Silvia (2010, p.125): a performatividade presente na cena contemporânea traz uma mutação cênica “ ênfase na realização da própria ação performática e não sobre seu valor de representação [...]Esse desvio determina outro tipo de endereçamento ao receptor, transformando o apelo puramente especular em encorajamento de percepções sensoriais, por meio do mergulho em experiências imersivas próprias às novas tecnologias”.
Foi escolhido para esse espetáculo, fazê-lo em um espaço alternativo ou também denominado (Site specific), que é quando uma obra cênica ou plástica, etc; é adaptada de acordo com o espaço e ambiente escolhido, onde o espetáculo se adapta de acordo com as potencias que o lugar tem, mas também se adapta aos desafios e problemas que ele pode gerar. As pessoas não ficam apenas passivas e sentadas neste tipo de espaço, elas se deslocam, sentam, levantam, falam, comem, bebem, observam e escolhem o que querem focar sua atenção, a simultaneidade de acontecimentos e ações está presente no espaço, independente dos atores. “Amargo Vietnã” foi pensado em dois lugares diferentes, primeiro o Centro de Artes e Convenções de Ouro Preto (UFOP), porém logo depois modificaram para outro lugar, O Galpão Sinhá Olímpia. Escolhido o espaço, no processo foram experimentados diversos pontos, como jardim, cozinha, e galpão onde se encontra lindas alegorias de escola de samba, alterações foram sendo feitas até a ultima semana de apresentação, tudo com orientação da Professora Nina Caetano e por trocas de dicas com o coletivo que estava produzindo o mesmo.
Algumas soluções que são necessárias para o espetáculo ficar ainda melhor são: ajustes na iluminação, pois há momentos em que os atores ficam no escuro, também a projeção de voz e finalizações de frases podiam ter sido melhor trabalhadas. E um grande problema de lugar alternativo, não convencional são os imprevistos que podem ocorrer, como foi no caso de “Amargo Vietnã”, pois os a chuva atrapalhou algumas apresentações, por ser em lugar aberto, tendo de haver modificação no horário de algumas apresentações. Ruídos e músicas em alto volume na vizinhança foi algo que também gerou um incômodo, porém é algo difícil de se controlar, tendo de se adaptar à situação. Foi um processo que tive a oportunidade de participar enquanto operador de som, fazendo diversas trocas com a equipe, tomando café e me divertindo, além de tudo isso acontecer num belo jardim. Ao mesmo tempo tive o gosto de espectar, e enquanto espectador, me sentir contemplado e fui levado pelas histórias ali apresentadas em suas diversas formas, espero assim que tenha uma continuidade e que outros tenham a oportunidade de vivenciar essa experiência.

FICHA TÉCNICA

Texto: Daniel Magalhães
Dramaturgistas: Daniel Magalhães e Karla Ribeiro
Direção: Coletiva
Atuação: Daniel Magalhães e Karla Ribeiro
Cenografia, figurino e registro fotográfico: Ricardo Maia
Pintura Cenográfica: Tom Ferigati
Iluminação: Luana Melo Franco
Produção executiva: Gislayne Érika
Operador de som: Gustavo Ferreira
Arte Gráfica: Eduardo Rigée
Produção e mídia: Renato Condé
Revisão de texto: Luiz Garcia
Marcenaria: Vitor Mourão
Colaboradores: Adriana Maciel, Ana Paula Ferreira, Beatriz Lelis, Giulia Olivia, Ioná Faustino, Josiane de Oliveira, Thais Garcia, Weverton Cerqueira
Orientação: Nina Caetano
Classificação indicativa: 12 anos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FÉRAL, Josette. Além dos limites. São Paulo: Perspectiva, 2015.
FÉRAL, Josette. Por uma poética performativa: O teatro performativo. Tradução: Lígia Borges. Revisão da tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira. 2009.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. - São Paulo: Perspectiva: 2010.
https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/ppgac/article/view/438/410


Foto: Ricardo Maia


Foto: Ricardo Maia

Arte gráfica: Eduardo Rigée

sexta-feira, 13 de julho de 2018

O que permanece de um todo de que se retirou uma ou várias partes?


Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Foto: Panmella Ribeiro

O que é a vida? Como defini-la? Debruçando-se sobre essa questão, o filósofo italiano Giorgio Agamben recorre à cultura grega, especialmente a Platão e Aristóteles, para tentar estabelecer sua própria percepção a respeito do tema. Fundamentado em dois termos gregos distintos utilizados para exprimir o que chamamos de “vida”, zoé e bios, Agamben destrincha aos poucos o assunto.
Zoé, na antiguidade grega, é a vida natural, ligada às dimensões biológicas e orgânicas, regida por normas da natureza e de instintos puramente animais e de (sobre)vivência, livre da cultura e da vontade. É o simples fato de viver comum a todos os seres vivos. Ou seja, zoé é o que aproxima a condição humana da animal: a imersão corporal no mundo, as exigências biológicas enquanto simples dimensão fisiológica ou metabólica. Aqui, os seres não se qualificam individual e nem socialmente, suas relações são pré linguísticas e, portanto, não organizadas de forma lógica e intencional; sendo apenas guiados por impulsos naturais.
Bios indica a forma ou maneira de viver qualificada, própria de um indivíduo ou de um grupo. É a vida historicamente elaborada, qualificada por uma característica própria dos seres humanos: a linguagem. Assim, o ser humano passa a ser político e, possibilitado de ter uma vida em comunidade, não busca somente viver, mas levar uma boa vida, de acordo com preceitos adquiridos. Ele cria racionalmente a pólis com a finalidade de viver bem, mas com ela nasce o poder. E a natureza do poder corrompe a vida.
A pólis transforma a vida em objeto manipulável de dispositivos e estruturas ordenadoras do poder, castrando os sujeitos. Toda existência humana, pela ordem jurídica, é sagrada, sendo o primeiro direito humano o direito à vida. Mas esse mesmo ordenamento jurídico capta a vida e decide a maneira como ela deve ser vivida. Decide seu início e também seu fim. Decide a maneira que deve ser exercida a sexualidade das pessoas, decide quem deve viver ou não, decide qual vida merece ser vivida.
Assim, a pólis, espaço de comunhão da vida coletiva, é um espaço de limitação. Nela se busca construir uma vida além da zoé, pois essa deve se restringir ao ambiente da casa, da oikos. A bios, que se apresentava como o maior dos presentes para a dignificação do homem sobre os animais, se demonstra como uma prisão que qualifica a vida, na medida em que exige sua entrega às normas estabelecidas. Ao dizer "eu", o sujeito não pode mais ignorar a sua bios, está preso a ela e é levado a esquecer-se de sua infantil zoé. Assim, ele estará sempre em construção, no limiar entre o privado e o público.
Esses termos são fundamentais para se pensar os limites da condição humana, as fronteiras entre o humano e o inumano. Ao longo da história, as sociedades fundamentadas sob moldes ocidentais se distanciaram daquilo que os gregos chamavam de zoé a vida animalesca, instintiva , dando lugar à razão.
O espetáculo Zoé: restos de uma vida nua vai de encontro ao questionamento da soberania e hegemonia do racional em detrimento da zoé. A padronização da vida, do pensamento e dos corpos que leva a mecanização da existência e a diluição do que é sensível ao humano. Impossibilitados de comunicar-se com o exterior, dois corpos nus dançam seus restos. Se contagiam.
Os sons externos se confundem com os sons corporais dos atores. Os corpos se fundem entre si. Se mesclam e se penetram a todo momento. Revelam a possibilidade eterna e pulsante da contaminação. Quem controla aquilo que nos afeta? Não há segredo ou qualquer razão que isole um sistema emocional de nós. Ninguém está imune: o outro sempre acaba nos encontrando. Evoluímos pela contaminação. Ou morremos por ela. Para se falar de vida, é preciso também falar de morte, já que uma depende da outra para poder existir.
O espetáculo de teatro-dança tem influências do butoh e do contato improvisação, trazendo à cena corpos disformes, animalescos, movimentos subjetivos e por vezes repetitivos que causam estranhamento e estabelecem sentidos de acordo com o olhar de cada espectador. Durante a maior parte do espetáculo, apenas dois corpos e suas respirações ocupam o espaço cênico com sutileza, delicadeza e profundidade.
Constituído por fragmentos, o espetáculo caminha entre duplos morte/vida, luz/sombra, dentro/fora, expansão/contração – que revelam a essência humana afastada da racionalidade, abdicada de comunicação verbal. Em Zoé: restos de uma vida nua é o corpo que se manifesta. O corpo dividido jorra flores. O corpo grita a sua história e revela suas linhas. A pele demarcada cospe feridas íntimas. Revela restos de existência guardados nos músculos de cada corpo presente. O que sobra depois da contaminação?
Em virtude do minimalismo estético da cena, qualquer elemento que revela-se no palco também grita. Até mesmo ossos e suor comunicam. A iluminação e as projeções acompanham o som e o ritmo da cena que flui em (des)harmonias envolventes. Adentramos profundos sentimentos através das diferentes ambientações que a luz aciona. Em angústias, suspensões, fluidez, inquietações, aflições e apneias consiste o frenesi selvagem do espetáculo. O rito do ritmo desenvolvido pelos atores em cena expande os sentidos do público, que a esta altura está à flor da pele.
Quando o espetáculo caminha para o remate, um elemento cenográfico desponta em cena: uma taça de medicamentos que, em determinado momento, banha um corpo que a esta altura já não se encontra mais nu. Esse corpo apartado de sua natureza animal está doente. A "cura" realmente cura? Vivemos tempos cruéis onde precisamos ser saudáveis o tempo todo. E nos sentimos culpados de inúmeras maneiras quando não estamos. Mas nem tudo tem cura. Algumas feridas podem nos transformar profundamente e doerem para sempre. No súbito reflexo de um frêmito de desespero onde a razão domina os impulsos, um corpo tenta se salvar enquanto urubus de todas as espécies comem os seus restos. O que fica no espectador são as tensões e afetações quase que físicas de momentos de (in)consciências corporais.

FICHA TÉCNICA
Dança: Diego Abegão e Vinícius Amorim
Encenação e iluminação: Vinícius Amorim
Execução d
e iluminação: Laura Reis e Daniele Viola
Orientação: Éden Peretta
Produção: Anticorpos
investigações em dança
Classificação indicativa: 16 anos

REGISTRO FOTOGRÁFICO

Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Teatro Ouro Preto | Fevereiro de 2018.
Fotos: Panmella Ribeiro e Amanda Gardillari


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Humanitas, 2010.
BAPTISTA, M. R. Notas sobre o conceito de vida em Giorgio Agamben. In: Revista Profanações, v.1, n.1, 2014, p. 53-74. Disponível em: <http://www.periodicos.unc.br/index.php/prof/article/view/632>. Acesso em julho de 2018.
BARBOSA, Jonnefer Francisco. Formas e Políticas da vida. In: Kínesis, Vol. I, n° 02, 2009, p. 105-123.
RIGO, José Rogério; JUNGES, Fábio César. (2012). Biopolítica: Reflexões a partir de Giorgio Agamben. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, v. 1, p.1154-1161. São Leopoldo.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Dez incômodos de um modo como

Por: Camila Vendramini


Você sente alguma inquietação? Quando ela surge de fato, costuma ser em ambientes privados ou públicos? Ordens causam desconfortos? E você, por existir, gera algum importuno? Estimular constrangimentos é prazeroso?  Quando o seu saber é refutado você se incômoda? 

Pode-se mencionar que no dicionário incômodo é “um adjetivo na língua portuguesa que se refere ao que não é cômodo, confortável ou aconchegante. Também pode se referir a condição de mal-estar, indisposição ou perturbação provocada por algo.”

Na percepção da filosofia o próprio ato de contestar era uma forma de filosofar, de incomodar a paz e ordem social, podendo ser um perigo para as manobras políticas, os padrões sociais, e os privilégios vigentes na sociedade do capital.  Desde Sócrates na Grécia Antiga, em plena praça pública, o incômodo era algo presente, utilizando do método da dialética, através de estratégias em que a princípio se colocava no lugar de “não-saber” e aprendiz, para depois atacar com ironia o seu interlocutor contestando o seu saber, gerando assim um desconforto.   

O ato de perceber o que incomodava o grupo de teatro Calopsita, foi o mote de inspiração para a construção do espetáculo Em cômodos do modo como, da diretora Flaviane Flores Vieira de Magalhães. O lugar escolhido foi uma casa abandonada de Ouro Preto, havendo 10 cômodos que eram ocupados por 10 artistas com suas temáticas: religião (o paralelo entre céu e inferno), racismo (as mortes causadas em função da cor de pele) , mulher (pura e impura),  capitalismo (as grandes marcas que rege o sistema econômico do país), o riso (o poder que as piadas tem na sociedade), operários (exaustivas cargas horárias de trabalho) e dentre outras questões, que foram trabalhadas nas linguagens da instalação, performance e teatralidade, além dos corredores que coabitavam ações feitas pela “ordem do dia”.

Era uma espécie de visitação a uma galeria/museu em constante movimento, onde ao chegar havia a ordem do dia que entregava um formulário para o espectador preencher. E de acordo com avaliação da classe social, racial e de gênero, o público tinha mais ou menos tempo para visitar o museu. A subversão dos privilégios sociais era posta em xeque logo na entrada.

Pela casa havia camadas de teatralidade, ações, performances, instalações, produzidas a partir dos incômodos pessoais dos artistas envolvidos. Mesmo assumindo uma identidade pessoal, os artistas provocavam nas suas ações uma arte coletiva, onde todos se tornassem autores daquela obra. O espectador fazia a obra acontecer, e a mesma se modificava a partir dele em constante construção, se fazendo e se refazendo, dado à autoria compartilhada por todos os envolvidos durante as performances/instalações.

Os artistas foram a ponte de um entrelugar, um estado transitório para o desenrolar das ações, eles preparam o espaço para se entregarem ao jogo com espectador, convidando este a vivenciar uma experiencia sensorial na sua trajetória da visitação. Segundo David Sperling (2008, p. 128), "o artista transmutado em propositor convida o espectador, pelo ato, a tornar-se participante e, 'pela experiência, a tomar consciência da alienação em que vive'. Participação como ato imanente; a obra é o ato de fazê-la".

Intervenção Qual é sua graça?, realizada durante a apresentação de Em cômodos do modo como. Foto: Nathane Nathana 

Além disso, a proposta do espetáculo era que a relação não ficasse apenas no campo visual – o espectador como voyeur – como é de costume no teatro dramático, em que há uma cisão entre o artista que faz e o público que assiste, mas possibilitar a ele fazer e explorar outras percepções dos sentidos.

Dentro desta ótica, parafraseando Ana Bernstein (2005, p.382), pode-se dizer que a performance possibilita ao espectador re(agir) diante da ação, ele deixa de ser o espectador no sentido tradicional “daquele que vê, ou olha para uma cena ou ocorrência; espectador, circunstante, observador”, isto é, um observador distante, passivo. E passa a ser um espectador ativo e participante do evento artístico, podendo ser o próprio responsável pelo seu percurso experimental.

A ideia do espetáculo se aproximava de uma experiência singular e uma responsabilidade direcionada para o público, estes tinham que decidir como se relacionar com a obra de cada cômodo, mesmo que cada espaço proporcionava um jogo relacional único. Segundo Ricardo Basbaum (2008, p. 111), “mover 'você' (público) da posição passiva de espectador para o papel ativo e singular de ser o sujeito de sua própria experiência”, o que associa em certa medida ao posicionamento do público em relação ao espetáculo Em cômodos do modo como, já que cabiam a eles decidirem quais seriam os desfechos da sua participação.

Sendo eu sujeito da minha própria experiência na obra, abarcou uma singularidade presente no espetáculo como um todo, já que, cada instalação em um cômodo da casa me causava um incômodo único, seja pela sua temática ou até pela escolha estética do artista que coabitava aquele espaço.

Por fim, penso que, o espetáculo quebrou as paredes que separam artista que faz e público que recebe, se deslocando para um campo onde possamos construir uma rede colaborativa para o fazer artístico, desmistificando as zonas de conforto que estamos habituados na arte, gerando des-confortos.

Artistas envolvidos:

Alexandre Reis – performance ORDEM DO DIA
Bia Mendes – performance ANTI-CONCEPÇÃO FEMININA
Berilo Luigi Deiró Nosella – PROFESSOR ORIENTADOR
Bruna Massaro – performance ORDEM DO DIA
Cláudio Falcão – performance ORDEM DO DIA
Deivison Silvestre – exposição HQ MUNDO AZUL
Ernesto Alves De Almeida – intervenção PINTURA VIVA
Everton Lampe – performance HETEROTOPIAS: ENTRE O CÉU E O INFERNO
Everton José – performance SEM VALOR
Fany Magalhães – DIREÇÃO E PRODUÇÃO
Felipe Cunha – performance A INACREDITÁVEL DIGNIDADE DO BÍPEDE QUE RASTEJA
Fernanda Bacha – instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Fernando Augusto – performance ORDEM DO DIA
Fredd Amorim – performance ORDEM DO DIA
João Paulo Sousa – DESIGN GRÁFICO
Jotapê Antunes – performance ORDEM DO DIA
Laís Pires – performance INCLASSIFICAÇÃO LIVRE
Luís Fernando Castro – performance ORDEM DO DIA
Mariana C. Arantes– performance QUAL A SUA GRAÇA?
Marcelo Fernando – vídeo instalação ONTEM-HOJE-ONTEM
Márcio Masselli – performance DRAMA 2º TURNO
Mateus Aquino – performance ORDEM DO DIA
Natália Marques – exposição DESENHO DO CORPO LIVRE
Paulo Carvalho – instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Cão Pereira – intervenção PINTURA VIVA
Raphael Modesto – performance AÇOUGUE
Rody Ocampo – intervenção PINTURA VIVA
Winny Rocha – performance A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL

Referenciais bibliográficas:
BERNESTEIN, A. Marina Abramovic: do corpo do artista ao corpo do público. 2005
BRAGA, P. Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008.


quarta-feira, 11 de julho de 2018

Um espetáculo para convidar um amigo


A Cantora Careca: Um espetáculo para convidar um amigo

No dia 31 de novembro de 2017 o programa TUI: Teatro Universidade Informação da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) apresentava sua versão para o espetáculo A Cantora Careca de Eugène Ionesco.    

Sendo um dos grandes marcos do chamado teatro do absurdo, a dramaturgia segue toda a lógica do “movimento” denominado pelo teórico Martin Esslin durante a década de 1960, diálogos sem uma racionalidade aparente, com grande presença de elementos linguísticos que reforçam a incomunicabilidade que o autor romeno pontuava em suas obras.

A companhia do TUI, coordenada pelo professor Wilson Oliveira na ocasião, mantém os pontos fortes da obra intocados, a derrisão é clara durante a montagem, a não linearidade da dramaturgia continua apresentada, porém percebe-se a encenação de Rafael Carvalho presente nas sutis adaptações feitas para se atualizar, tanto em questão de época quanto em questão de local da apresentação, respectivamente, 2017 e Brasil em relação a década de 1950 na França.

O encenador utiliza de videomappings de Danilo Roxette para trazer elementos da tecnologia atual para exacerbar ainda mais o caráter não lógico da peça, projeções sobre atores com elementos da história brasileira, como a ditadura militar, com cenas e sons de conflitos, movimentos nacionalistas além de um trabalho dos próprios atores que bradavam falas incoerentes entre si, mas de grande potência quando isolados, atualizam e situam a apresentação no momento histórico presente.

É para assistir esse espetáculo que me encontro na fila ao lado de um amigo que não possui nenhum conhecimento prévio, seja sobre a peça, o autor ou a dramaturgia que se seguiria. Lanço a ele uma superficial explicação sobre o movimento e o contexto histórico do autor e da peça. Superficial tanto por minha não especialidade no assunto como também pelos 15 minutos que esperamos até estarmos acomodados em nossos lugares para que a peça começasse.

E começou com extrema intensidade: atores cantam, interpretam e realizam seus movimentos cênicos com uma carga de veracidade que vão de encontro com as palavras aparentemente sem sentido que saem de suas bocas, o que causa um efeito engraçadíssimo rapidamente contagiando a plateia e meu amigo que gargalhava ao meu lado.

Assim segue toda a encenação com pontos de relevância especial, destacados por meu próprio amigo não especialista: a cena das anedotas e a cena do casal que é casado e não se reconhece. Percebi a consciência de Rafael Carvalho para dar a esses pontos cruciais da peça a importância necessária para que ficassem marcadas no espectador, pontos que não se prendem pelo que contam dramaticamente, mas pela força imagética, simbólica e de derrisão que carregam.

A satisfação com que meu amigo deixou o Teatro Ouro Preto no Centro de Artes e Convenções da UFOP, acompanhada pela minha própria, deixou claro para mim o sucesso da encenação, mesmo com alguns problemas técnicos como atores que nitidamente não estavam devidamente familiarizados com a iluminação desenvolvida por Elvis Damasceno, em alguns momentos atores inclusive olham para os refletores buscando o foco no qual deveriam atuar.

Contratempos mínimos quando comparados com os acertos que a companhia, a meu ver, realizam através da adaptação sutil de um texto, atualmente, visto como um clássico moderno.


A Cantora Careca do TUI é uma recomendação pessoal a todos, seja para pessoas ligadas ou não ao meio teatral, e estará novamente em cartaz no dia 20 de julho de 2018, no teatro Sesi Mariana as 19h, fazendo parte da programação do Festival de Inverno de Ouro Preto, a entrada é franca e a classificação etária de 12 anos.

Ficha Técnica:

Adaptação Dramatúrgica: Rafael Carvalho e TUI

Encenação: Rafael Carvalho


Música de Cena (Concepção e Execução): Felício Godinho e Saulo Moraes

Concepção de Figurinos e Maquiagem: Jéssica Luiza Cardoso

Confecção de Figurinos e Bigode: Raphael Modesto

Videomapping: Danilo Roxette

Iluminação: Elvis Damasceno

Produção: Gislayne Érika

Concepção de Cenografia: Rafael Carvalho

Marcenaria: UFOP